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"A Essência da Pólvora".

domingo, 17 de outubro de 2010

O CAVALO DO ESPANHOL


O espanhol tinha um cavalo que se matava a trabalhar, mas a vida estava mal e o cavalo comia mais do que aquilo que o espanhol ganhava com ele.

Havia que encontrar uma solução para tão intrincado problema e, depois de muito pensar, o espanhol teve uma ideia que lhe pareceu luminosa.

Para o cavalo não dar por isso, cada dia o espanhol reduzia um pouco a ração ao cavalo, e para seu contento a coisa parecia resultar.

Quando já estava a gastar muito menos com a ração do cavalo do que aquilo ele rendia, a pobre alimária esticou o pernil.

Lamentava-se então o espanhol, inconsolado, para os seus amigos: agora que o meu cavalinho já estava quase habituado a não comer é que tenho o azar de ele me morrer.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Manifesto dos economistas aterrorizados
Crise e Dívida na Europa: 10 falsas evidências, 22 medidas em debate para sair do impasse

Associação Francesa de Economia Política (AEFP)

Manifesto dos economistas aterrorizados Crise e Dívida na Europa: 10 falsas evidências, 22 medidas em debate para sair do impasse


Philippe Askenazy (CNRS, Ecole d’économie de Paris), Thomas Coutrot (Conselho Científico da Attac), André Orléan (CNRS, EHESS, Presidente da AFEP), Henri Sterdyniak (OFCE)

(Tradução de Nuno Serra; Revisão de João Rodrigues)

Introdução

A retoma económica mundial, que foi possível graças a uma injecção colossal de fundos públicos no circuito económico (desde os Estados Unidos à China) é frágil, mas real. Apenas um continente continua em retracção, a Europa. Reencontrar o caminho do crescimento económico deixou de ser a sua prioridade política. A Europa decidiu enveredar por outra via, a da luta contra os défices públicos.

“Na União Europeia, estes défices são de facto elevados – 7% em média em 2010 – mas muito inferiores aos 11% dos Estados Unidos. Enquanto alguns estados norte-americanos com um peso económico mais relevante do que a Grécia (como a Califórnia, por exemplo), se encontram numa situação de quase falência, os mercados financeiros decidiram especular com as dívidas soberanas de países europeus, particularmente do Sul. A Europa, de facto, encontra-se aprisionada na sua própria armadilha institucional: os Estados são obrigados a endividar-se nas instituições financeiras privadas que obtêm injecções de liquidez, a baixo custo, do Banco Central Europeu (BCE). Por conseguinte, os mercados têm em seu poder a chave do financiamento dos Estados. Neste contexto, a ausência de solidariedade europeia incentiva a especulação, ao mesmo tempo que as agências de notação apostam na acentuação da desconfiança.

Foi necessário que a agência Moody baixasse a notação da Grécia, a 15 de Junho, para que os dirigentes europeus redescobrissem o termo “irracionalidade”, a que tanto recorreram no início da crise do subprime. Da mesma forma que agora se descobre que a Espanha está muito mais ameaçada pela fragilidade do seu modelo de crescimento e do seu sistema bancário do que pela sua dívida pública.”

Para “tranquilizar os mercados” foi improvisado um Fundo de Estabilização do euro e lançados, por toda a Europa, planos drásticos – e em regra cegos – de redução das despesas públicas. As primeiras vítimas são os funcionários públicos, como sucede em França, onde a subida dos descontos para as suas pensões corresponderá a uma redução escondida dos seus salários, encontrando-se o seu número a diminuir um pouco por toda a parte, pondo em causa os serviços públicos. Da Holanda a Portugal, passando pela França com a actual reforma das pensões, as prestações sociais estão em vias de ser severamente amputadas. Nos próximos anos, o desemprego e a precariedade do emprego vão seguramente aumentar. Estas medidas são irresponsáveis de um ponto de vista político e social, mas também num plano estritamente económico.

Esta política, que apenas muito provisoriamente acalmou a especulação, teve já consequências extremamente negativas em muitos países europeus, afectando de modo particular a juventude, o mundo do trabalho e as pessoas em situação de maior fragilidade. A longo prazo, esta política reactivará as tensões na Europa e ameaçará por isso a própria construção europeia, que é muito mais do que um projecto económico. Supõe-se que a economia esteja ao serviço da construção de um continente democrático, pacífico e unido. Mas em vez disso, uma espécie de ditadura dos mercados é hoje imposta por toda a parte, particularmente em Portugal, Espanha e Grécia, três países que eram ditaduras no início da década de setenta, ou seja, há apenas quarenta anos.

Quer se interprete como um desejo de “tranquilizar os mercados”, por parte de governantes assustados, quer se interprete como um pretexto para impor opções ditadas pela ideologia, a submissão a esta ditadura não é aceitável, uma vez que já demonstrou a sua ineficácia económica e o seu potencial destrutivo no plano político e social. Um verdadeiro debate democrático sobre as escolhas de política económica deve pois ser aberto, em França e na Europa. A maior parte dos economistas que intervém no debate público, fazem-no para justificar ou racionalizar a submissão das políticas às exigências dos mercados financeiros. É certo que, um pouco por toda a parte, os poderes públicos tiveram que improvisar planos keynesianos de relançamento da economia e, por vezes, chegaram inclusive a nacionalizar temporariamente os bancos. Mas eles querem fechar, o mais rapidamente possível, este parêntese. A lógica neoliberal é sempre a única que se reconhece como legítima, apesar dos seus evidentes fracassos. Fundada na hipótese da eficiência dos mercados financeiros, preconiza a redução da despesa pública, a privatização dos serviços públicos, a flexibilização do mercado de trabalho, a liberalização do comércio, dos serviços financeiros e dos mercados de capital, por forma a aumentar a concorrência em todos os domínios e em toda a parte…

Enquanto economistas, aterroriza-nos constatar que estas políticas continuam a estar na ordem do dia e que os seus fundamentos teóricos não sejam postos em causa. Mas os factos trataram de questionar os argumentos utilizados desde há trinta anos para orientar as opções das políticas económicas europeias. A crise pôs a nu o carácter dogmático e infundado da maioria das supostas evidências, repetidas até à saciedade por aqueles que decidem e pelos seus conselheiros. Quer se trate da eficiência e da racionalidade dos mercados financeiros, da necessidade de cortar nas despesas para reduzir a dívida pública, quer se trate de reforçar o “pacto de estabilidade”, é imperioso questionar estas falsas evidências e mostrar a pluralidade de opções possíveis em matéria de política económica. Outras escolhas são possíveis e desejáveis, com a condição de libertar, desde já, o garrote imposto pela indústria financeira às políticas públicas.

Procedemos de seguida a uma apresentação crítica de dez postulados que continuam a inspirar, dia após dia, as decisões dos poderes públicos em toda a Europa, apesar dos lancinantes desmentidos que a crise financeira e as suas consequências nos revelam. Trata-se de falsas evidências, que inspiram medidas injustas e ineficazes, perante as quais expomos vinte e duas contrapropostas para debate. Cada uma delas não reúne necessariamente a concordância unânime dos signatários deste manifesto, mas deverão ser levadas a sério, caso se pretenda resgatar a Europa do impasse em que neste momento se encontra.


Falsa evidência n.º 1:

OS MERCADOS FINANCEIROS SÃO EFICIENTES


Existe hoje um facto que se impõe a todos os observadores: o papel primordial que desempenham os mercados financeiros no funcionamento da economia. Trata-se do resultado de uma longa evolução, que começou nos finais da década de setenta. Independentemente da forma como a possamos medir, esta evolução assinala uma clara ruptura, tanto quantitativa como qualitativa, em relação às décadas precedentes. Sob a pressão dos mercados financeiros, a regulação do capitalismo transformou-se profundamente, dando origem a uma forma inédita de capitalismo, que alguns designaram por “capitalismo patrimonial”, por “capitalismo financeiro” ou, ainda, por “capitalismo neoliberal”.

Estas mudanças encontraram na hipótese da eficiência informacional dos mercados financeiros a sua justificação teórica. Com efeito, segundo esta hipótese, torna-se crucial desenvolver os mercados financeiros e fazer com que eles possam funcionar o mais livremente possível, dado constituírem o único mecanismo de afectação eficaz do capital. As políticas obstinadamente levadas a cabo nos últimos trinta anos seguem esta recomendação. Trata-se de construir um mercado financeiro mundialmente integrado, no qual todos os actores (empresas, famílias, Estados, instituições financeiras) possam trocar toda a espécie de títulos (acções, obrigações, dívidas, derivados, divisas), em qualquer prazo (longo, médio e curto). Os mercados financeiros assemelharam-se cada vez mais ao mercado “sem fricção”, de que falam os manuais: o discurso económico convertera-se em realidade. Como os mercados se tornaram cada vez mais “perfeitos”, no sentido da teoria económica dominante, os analistas acreditaram que doravante o sistema financeiro passaria a ser muito mais estável que no passado. A “grande moderação” – o período de crescimento económico sem subida dos salários, que os Estados Unidos conheceram entre 1990 e 2007 – parecia confirmá-lo.

Apesar de tudo o que aconteceu, o G20 persiste ainda hoje na ideia de que os mercados financeiros constituem o melhor mecanismo de afectação do capital. A primazia e integridade dos mercados financeiros continuam por isso a ser os objectivos finais da nova regulação financeira. A crise é interpretada não como o resultado inevitável da lógica dos mercados desregulados, mas sim como um efeito da desonestidade e irresponsabilidade de certos actores financeiros, mal vigiados pelos poderes públicos.

A crise, porém, encarregou-se de demonstrar que os mercados não são eficientes e que não asseguram uma afectação eficaz do capital. As consequências deste facto em matéria de regulação e de política económica são imensas. A teoria da eficiência assenta na ideia de que os investidores procuram (e encontram) a informação mais fiável possível quanto ao valor dos projectos que competem entre si por financiamento. Segundo esta teoria, o preço que se forma num mercado reflecte a avaliação dos investidores e sintetiza o conjunto da informação disponível: constitui, portanto, um bom cálculo do verdadeiro valor dos activos. Ou seja, supõe-se que esse valor resume toda a informação necessária para orientar a actividade económica e, desse modo, a vida social. O capital é, portanto, investido nos projectos mais rentáveis, deixando de lado os projectos menos eficazes. Esta é a ideia central da teoria: a concorrência financeira estabelece preços justos, que constituem sinais fiáveis para os investidores, orientando eficazmente o crescimento económico.

Mas a crise veio justamente confirmar o resultado de diversos trabalhos científicos que puseram esta proposição em causa. A concorrência financeira não estabelece, necessariamente, preços justos. Pior: a concorrência financeira é, frequentemente, destabilizadora e conduz a evoluções de preços excessivas e irracionais, as chamadas bolhas financeiras.

O principal erro da teoria da eficiência dos mercados financeiros consiste em transpor, para os produtos financeiros, a teoria usualmente aplicada aos mercados de bens correntes. Nestes últimos, a concorrência é em parte auto-regulada, em virtude do que se chama a “lei” da oferta e da procura: quando o preço de um bem aumenta, os produtores aumentam a sua oferta e os compradores reduzem a procura; o preço baixa e regressa, portanto, ao seu nível de equilíbrio. Por outras palavras, quando o preço de um bem aumenta, existem forças de retracção que tendem a inverter essa subida. A concorrência produz aquilo a que se chama “feedbacks negativos”, forças de retracção que vão em sentido contrário ao da dinâmica inicial. A ideia da eficiência nasce de uma transposição directa deste mecanismo para o mercado financeiro.

Mas neste último caso a situação é muito diferente. Quando o preço aumenta é frequente constatar não uma descida mas sim um aumento da procura! De facto, a subida de preço significa uma rentabilidade maior para aqueles que possuem o título, em virtude das mais-valias que auferem. A subida de preço atrai portanto novos compradores, o que reforça ainda mais a subida inicial. As promessas de bónus incentivam os que efectuam as transacções a ampliar ainda mais o movimento. Até ao acidente, imprevisível mas inevitável, que provoca a inversão das expectativas e o colapso. Este fenómeno, digno da miopia dos “borregos de Panurge”1, é um processo de “feedbacks positivos” que agrava os desequilíbrios. É a bolha especulativa: uma subida acumulada dos preços que se alimenta a si própria. Deste tipo de processo não resultam preços justos mas sim, pelo contrário, preços inadequados.

O lugar preponderante que os mercados financeiros ocupam não pode, portanto, conduzir a eficácia alguma. Mais do que isso, é uma fonte permanente de instabilidade, como demonstra de forma clara a série ininterrupta de bolhas que temos vindo a conhecer desde há vinte anos: Japão, Sudeste Asiático, Internet, mercados emergentes, sector imobiliário, titularização. A instabilidade financeira traduz-se assim em fortes flutuações das taxas de câmbio e da Bolsa, que manifestamente não têm qualquer relação com os fundamentos da economia. Esta instabilidade, nascida no sector financeiro, propaga-se a toda a economia real através de múltiplos mecanismos.

Para reduzir a ineficiência e instabilidade dos mercados financeiros, avançamos com quatro medidas:

Medida n.º 1: Limitar, de forma muito estrita, os mercados financeiros e as actividades dos actores financeiros, proibindo os bancos de especular por conta própria, evitando assim a propagação das bolhas e dos colapsos;

Medida n.º 2: Reduzir a liquidez e a especulação destabilizadora através do controle dos movimentos de capitais e através de taxas sobre as transacções financeiras;

Medida n.º 3: Limitar as transacções financeiras às necessidades da economia real (por exemplo, CDS unicamente para quem possua títulos segurados, etc.);

Medida n.º 4: Estabelecer tectos para as remunerações dos operadores de transacções financeiras.



Falsa evidência n.º 2:

OS MERCADOS FINANCEIROS FAVORECEM O CRESCIMENTO ECONÓMICO

A integração financeira conduziu o poder da finança ao seu zénite, na medida em que ela unifica e centraliza a propriedade capitalista à escala mundial. Daí em diante, é ela quem determina as normas de rentabilidade exigidas ao conjunto dos capitais. O projecto consistia em substituir o financiamento bancário dos investidores pelo financiamento através dos mercados de capitais. Projecto que fracassou porque hoje, globalmente, são as empresas quem financia os accionistas, em vez de suceder o contrário. Consequentemente, a governação das empresas transformou-se profundamente para atingir as normas de rentabilidade exigidas pelos mercados financeiros. Com o aumento exponencial do valor das acções, impôs-se uma nova concepção da empresa e da sua gestão, pensadas como estando ao serviço exclusivo dos accionistas. E desapareceu assim a ideia de um interesse comum inerente às diferentes partes, vinculadas à empresa. Os dirigentes das empresas cotadas em Bolsa passaram a ter como missão primordial satisfazer o desejo de enriquecimento dos accionistas. Por isso, eles mesmos deixaram de ser assalariados, como denota o galopante aumento das suas remunerações. De acordo com a teoria da “agência”, trata-se de proceder de modo a que os interesses dos dirigentes estejam alinhados com os interesses dos accionistas.

Um ROE (Return on Equity ou rendimento dos capitais próprios) de 15% a 25% passa a constituir a norma que impõe o poder da finança às empresas e aos assalariados e a liquidez é doravante o seu instrumento, permitindo aos capitais não satisfeitos, a qualquer momento, ir procurar rendimentos noutro lugar. Face a este poder, tanto os assalariados como a soberania política ficam, pelo seu fraccionamento, em condição de inferioridade. Esta situação desequilibrada conduz a exigências de lucros irrazoáveis, na medida em que reprimem o crescimento económico e conduzem a um aumento contínuo das desigualdades salariais. Por um lado, as exigências de lucro inibem fortemente o investimento: quanto mais elevada for a rentabilidade exigida, mais difícil se torna encontrar projectos com uma performance suficientemente eficiente para a satisfazer. As taxas de investimento fixam-se assim em níveis historicamente débeis, na Europa e nos Estados Unidos. Por outro lado, estas exigências provocam uma constante pressão para a redução dos salários e do poder de compra, o que não favorece a procura. A desaceleração simultânea do investimento e do consumo conduz a um crescimento débil e a um desemprego endémico. Nos países anglo-saxónicos, esta tendência foi contrariada através do aumento do endividamento das famílias e através das bolhas financeiras, que geram uma riqueza assente num crescimento do consumo sem salários, mas que desemboca no colapso.

Para superar os efeitos negativos dos mercados financeiros sobre a actividade económica, colocamos em debate três medidas:

Medida n.º 5: Reforçar significativamente os contra-poderes nas empresas, de modo a obrigar os dirigentes a ter em conta os interesses do conjunto das partes envolvidas;

Medida n.º 6: Aumentar fortemente os impostos sobre os salários muito elevados, de modo a dissuadir a corrida a rendimentos insustentáveis;

Medida n.º 7: Reduzir a dependência das empresas em relação aos mercados financeiros, incrementando uma política pública de crédito (com taxas preferenciais para as actividades prioritárias no plano social e ambiental).



Falsa evidência n.º 3:

OS MERCADOS SÃO BONS JUIZES DO GRAU DE SOLVÊNCIA DOS ESTADOS


Segundo os defensores da eficiência dos mercados financeiros, os operadores de mercado teriam em conta a situação objectiva das finanças públicas para avaliar o risco de subscrever um empréstimo ao Estado. Tomemos o exemplo da dívida grega: os operadores financeiros, e todos quantos tomam as decisões, recorreram unicamente às avaliações financeiras para ajuizar sobre a situação. Assim, quando a taxa exigida à Grécia ascendeu a mais de 10%, cada um deduziu que o risco de incumprimento de pagamento estaria próximo: se os investidores exigem tamanho prémio de risco é porque o perigo é extremo.

Mas há nisto um profundo erro, quando compreendemos a verdadeira natureza das avaliações feitas pelos mercados financeiros. Como não é eficiente, o mais provável é que apresente preços completamente desconectados dos fundamentos económicos. Nessas condições, é irrazoável entregar unicamente às avaliações financeiras a análise de uma dada situação. Atribuir um valor a um título financeiro não é uma operação comparável a medir uma proporção objectiva, como por exemplo calcular o peso de um objecto. Um título financeiro é um direito sobre rendimentos futuros: para o avaliar é necessário prever o que será o futuro. É uma questão de valoração, não uma tarefa objectiva, porque no instante t o futuro não se encontra de nenhum modo predeterminado. Nas salas de mercado, as coisas são o que os operadores imaginam que venham a ser. O preço de um activo financeiro resulta de uma avaliação, de uma crença, de uma aposta no futuro: nada assegura que a avaliação dos mercados tenha alguma espécie de superioridade sobre as outras formas de avaliação.

A avaliação financeira não é, sobretudo, neutra: ela afecta o objecto que é medido, compromete e constrói um futuro que imagina. Deste modo, as agências de notação financeira contribuem largamente para determinar as taxas de juro nos mercados obrigacionistas, atribuindo classificações carregadas de grande subjectividade, contaminadas pela vontade de alimentar a instabilidade, fonte de lucros especulativos. Quando baixam a notação de um Estado, as agências de notação aumentam a taxa de juro exigida pelos actores financeiros para adquirir os títulos da dívida pública desse Estado e ampliam assim o risco de colapso, que elas mesmas tinham anunciado.

Para reduzir a influência da psicologia dos mercados no financiamento dos Estados, colocamos em debate duas medidas:

Medida n.º 8: As agências de notação financeira não devem estar autorizadas a influenciar, de forma arbitrária as taxas de juro dos mercados de dívida pública, baixando a notação de um Estado: a sua actividade deve ser regulamentada, exigindo-se que essa classificação resulte de um cálculo económico transparente;

Medida n.º 8 (b): Libertar os Estados da ameaça dos mercados financeiros, garantindo a compra de títulos da dívida pública pelo BCE.



Falsa evidência n.º 4:

A SUBIDA ESPECTACULAR DAS DÍVIDAS PÚBLICAS É O RESULTADO DE UM EXCESSO DE DESPESAS


Michel Pébereau, um dos “padrinhos” da banca francesa, descrevia em 2005, num dos seus relatórios oficiais ad hoc, uma França asfixiada pela dívida pública e que sacrificava as suas gerações futuras ao entregar-se a gastos sociais irreflectidos. O Estado endividava-se como um pai de família alcoólico, que bebe acima das suas posses: é esta a visão que a maioria dos editorialistas costuma propagar. A explosão recente da dívida pública na Europa e no mundo deve-se porém a outra coisa: aos planos de salvamento do sector financeiro e, sobretudo, à recessão provocada pela crise bancária e financeira que começou em 2008: o défice público médio na zona euro era apenas de 0,6% do PIB em 2007, mas a crise fez com que passasse para 7%, em 2010. Ao mesmo tempo, a dívida pública passou de 66% para 84% do PIB.

O aumento da dívida pública, contudo, tanto em França como em muitos outros países europeus, foi inicialmente moderado e antecedeu esta recessão: provém, em larga medida, não de uma tendência para a subida das despesas públicas – dado que, pelo contrário, desde o início da década de noventa estas se encontravam estáveis ou em declínio na União Europeia, em proporção do PIB – mas sim à quebra das receitas públicas, decorrente da debilidade do crescimento económico nesse período e da contra-revolução fiscal que a maioria dos governos levou a cabo nos últimos vinte e cinco anos. A longo prazo, a contra-revolução fiscal alimentou continuamente a dilatação da dívida, de recessão em recessão. Em França, um recente estudo parlamentar situa em 100.000 milhões de euros, em 2010, o custo das descidas de impostos, aprovadas entre 2000 e 2010, sem que neste valor estejam sequer incluídas as exonerações relativas a contribuições para a segurança social (30.000 milhões) e outros “encargos fiscais”. Perante a ausência de uma harmonização fiscal, os Estados europeus dedicaram-se livremente à concorrência fiscal, baixando os impostos sobre as empresas, os salários mais elevados e o património. Mesmo que o peso relativo dos factores determinantes varie de país para país, a subida quase generalizada dos défices públicos e dos rácios de dívida pública na Europa, ao longo dos últimos trinta anos, não resulta fundamentalmente de uma deriva danosa das despesas públicas. Um diagnóstico que abre, evidentemente, outras pistas para além da eterna exigência de redução da despesa pública.

Para instaurar um debate público informado acerca da origem da dívida e dos meios de a superar, colocamos em debate uma proposta:

Medida n.º 9: Efectuar uma auditoria pública das dívidas soberanas, de modo a determinar a sua origem e a conhecer a identidade dos principais detentores de títulos de dívida e os respectivos montantes que possuem.



Falsa evidência n.º 5:

É PRECISO REDUZIR AS DESPESAS PARA DIMINUIR A DÍVIDA PÚBLICA


Mesmo que o aumento da dívida pública tivesse resultado, em parte, de um aumento das despesas públicas, o corte destas despesas não contribuiria necessariamente para a solução, porque a dinâmica da dívida pública não tem muito que ver com a de uma casa: a macroeconomia não é redutível à economia doméstica. A dinâmica da dívida depende de vários factores: do nível dos défices primários, mas também da diferença entre a taxa de juro e a taxa de crescimento nominal da economia.

Ora, se o crescimento da economia for mais débil do que a taxa de juro, a dívida cresce mecanicamente devido ao “efeito de bola de neve”: o montante dos juros dispara, o mesmo sucedendo com o défice total (que inclui os juros da dívida). Foi assim que, no início da década de noventa, a política do franco forte levada a cabo por Bérégovoy – e que se manteve apesar da recessão de 1993/94 – se traduziu numa taxa de juro durante muito tempo mais elevada do que a taxa de crescimento, o que explica a subida abrupta da dívida pública em França neste período. Trata-se do mesmo mecanismo que permite compreender o aumento da dívida durante a primeira metade da década de oitenta, sob o impacto da revolução neoliberal e da política de taxas de juro elevadas, conduzidas por Ronald Reagan e Margaret Thatcher.

Mas a própria taxa de crescimento da economia não é independente da despesa pública: no curto prazo, a existência de despesas públicas estáveis limita a magnitude das recessões (“estabilizadores automáticos”); no longo prazo, os investimentos e as despesas públicas (educação, saúde, investigação, infra-estruturas…) estimulam o crescimento. É falso afirmar que todo o défice público aumenta necessariamente a dívida pública, ou que qualquer redução do défice permite reduzir a dívida. Se a redução dos défices compromete a actividade económica, a dívida aumentará ainda mais. Os comentadores liberais sublinham que alguns países (Canadá, Suécia, Israel) efectuaram ajustes brutais nas suas contas públicas nos anos noventa e conheceram, de imediato, um forte salto no crescimento. Mas isso só é possível se o ajustamento se aplicar a um país isolado, que adquire novamente competitividade face aos seus concorrentes. Evidentemente, os partidários do ajustamento estrutural europeu esquecem-se que os países têm como principais clientes e concorrentes os outros países europeus, já que a União Europeia está globalmente pouco aberta ao exterior. Uma redução simultânea e maciça das despesas públicas, no conjunto dos países da União Europeia, apenas pode ter como consequência uma recessão agravada e, portanto, uma nova subida da dívida pública.

Para evitar que o restabelecimento das finanças públicas provoque um desastre social e político, lançamos para debate duas medidas:

Medida n.º 10: Manter os níveis de protecção social e, inclusivamente, reforçá-los (subsídio de desemprego, habitação…);

Medida n.º 11: Aumentar o esforço orçamental em matéria de educação, de investigação e de investimento na reconversão ecológica e ambiental…tendo em vista estabelecer as condições de um crescimento sustentável, capaz de permitir uma forte descida do desemprego.



Falsa evidência n.º 6:

A DÍVIDA PÚBLICA TRANSFERE O CUSTO DOS NOSSOS EXCESSOS PARA OS NOSSOS NETOS


A afirmação de que a dívida pública constitui uma transferência de riqueza que prejudica as gerações futuras é outra afirmação falaciosa, que confunde economia doméstica com macroeconomia. A dívida pública é um mecanismo de transferência de riqueza, mas é-o sobretudo dos contribuintes comuns para os rentistas.

De facto, baseando-se na crença, raramente comprovada, de que a redução dos impostos estimula o crescimento e aumenta, posteriormente, as receitas públicas, os Estados europeus têm vindo a imitar os Estados Unidos desde 1980, adoptando uma política sistemática de redução da carga fiscal. Multiplicaram-se as reduções de impostos e das contribuições para a segurança social (sobre os lucros das sociedades, sobre os rendimentos dos particulares mais favorecidos, sobre o património e sobre as cotizações patronais), mas o seu impacto no crescimento económico continua a ser muito incerto. As políticas fiscais anti-redistributivas agravaram, por sua vez, e de forma acumulada, as desigualdades sociais e os défices públicos.

Estas políticas de redução fiscal obrigaram as administrações públicas a endividar-se junto dos agregados familiares favorecidos, através dos mercados financeiros, de modo a financiar os défices gerados. É o que se poderia chamar de “efeito jackpot”: com o dinheiro poupado nos seus impostos, os ricos puderam adquirir títulos (portadores de juros) da dívida pública, emitida para financiar os défices públicos provocados pelas reduções de impostos… Por esta via, o serviço da dívida pública em França representa 40.000 milhões de euros, quase tanto como as receitas do imposto sobre o rendimento. Mas esta jogada é ainda mais brilhante, pelo facto de ter conseguido convencer a opinião pública de que os culpados da dívida pública eram os funcionários, os reformados e os doentes.

O aumento da dívida pública na Europa ou nos Estados Unidos não é portanto o resultado de políticas keynesianas expansionistas ou de políticas sociais dispendiosas, mas sim o resultado de uma política que favorece as camadas sociais privilegiadas: as “despesas fiscais” (descida de impostos e de contribuições) aumentaram os rendimentos disponíveis daqueles que menos necessitam, daqueles que desse modo puderam aumentar ainda mais os seus investimentos, sobretudo em Títulos do Tesouro, remunerados em juros pelos impostos pagos por todos os contribuintes. Em suma, estabeleceu-se um mecanismo de redistribuição invertido, das classes populares para as classes mais favorecidas, através da dívida pública, cuja contrapartida é sempre o rendimento privado.

Para corrigir de forma equitativa as finanças públicas na Europa e em França, colocamos em debate duas medidas:

Medida n.º 12: Atribuir de novo um carácter fortemente redistributivo à fiscalidade directa sobre os rendimentos (supressão das deduções fiscais, criação de novos escalões de impostos e aumento das taxas sobre os rendimentos…);

Medida n.º 13: Acabar com as isenções de que beneficiam as empresas que não tenham um efeito relevante sobre o emprego.



Falsa evidência n.º 7:

É PRECISO ASSEGURAR A ESTABILIDADE DOS MERCADOS FINANCEIROS PARA PODER FINANCIAR A DÍVIDA PÚBLICA


Deve analisar-se, a nível mundial, a correlação entre a subida das dívidas públicas e a financeirização da economia. Nos últimos trinta anos, favoráveis à liberalização total da circulação de capitais, o sector financeiro aumentou consideravelmente a sua influência sobre a economia. As grandes empresas recorrem cada vez menos ao crédito bancário e cada vez mais aos mercados financeiros. Do mesmo modo, as famílias vêem uma parte cada vez maior das suas poupanças ser drenada para o mercado financeiro (como no caso das pensões), através dos diversos produtos de investimento e, inclusivamente, em alguns países, através do financiamento da sua habitação (por crédito hipotecário). Os gestores de carteiras que tentam diversificar os riscos procuram títulos públicos como complemento aos títulos privados. E encontram-nos facilmente nos mercados, em virtude de os governos terem levado a cabo políticas similares, que conduziram a um relançamento dos défices: taxas de juro elevadas, descida dos impostos sobre os altos rendimentos, incentivo maciço à poupança financeira das famílias para favorecer a capitalização através da poupança reforma, etc.

Ao nível europeu, a financeirização da dívida pública encontra-se inscrita nos tratados: com Maastricht, os Bancos Centrais ficaram proibidos de financiar directamente os Estados, que devem encontrar quem lhes conceda empréstimos nos mercados financeiros. Esta “repressão monetária” acompanha a “liberalização financeira” e gera exactamente o contrário das políticas adoptadas após a grave crise da década de 30; politicas de “repressão financeira” (drásticas restrições à liberdade de movimento dos capitais) e de “liberalização monetária” (com o fim do regime do padrão-ouro). Trata-se de submeter os Estados, que se supõe serem por natureza despesistas, à disciplina dos mercados financeiros, que se supõe serem, por natureza, eficientes e omniscientes.

Como resultado desta escolha doutrinária, o Banco Central Europeu não tem por isso legitimidade para subscrever directamente a emissão de obrigações públicas dos Estados europeus. Privados da garantia de se poderem financiar junto do BCE, os países do sul tornaram-se presas fáceis dos ataques especulativos. De facto, ainda que em nome de uma ortodoxia sem fissuras, o Banco Central Europeu – que sempre se recusou a fazê-lo – teve de comprar, desde há alguns meses a esta parte – obrigações de Estado à taxa de juro do mercado, de modo a acalmar as tensões nos mercados de obrigações europeu. Mas nada nos diz que isso seja suficiente, caso a crise da dívida se agrave e as taxas de juro de mercado disparem. Poderá então ser difícil manter esta ortodoxia monetária, que carece, manifestamente, de fundamentos científicos sérios.

Para resolver o problema da dívida pública, colocamos em debate duas medidas:

Medida n.º 14: Autorizar o Banco Central Europeu a financiar directamente os Estados (ou a impor aos bancos comerciais a subscrição de obrigações públicas emitidas), a um juro reduzido, aliviando desse modo o cerco que lhes é imposto pelos mercados financeiros;

Medida n.º 15: Caso seja necessário, reestruturar a dívida pública, limitando por exemplo o seu peso a determinado valor percentual do PIB, e estabelecendo uma discriminação entre os credores segundo o volume de títulos que possuam: os grande rentistas (particulares ou instituições) deverão aceitar uma extensão da maturidade da dívida, incluindo anulações parciais ou totais. E é igualmente necessário voltar a negociar as exorbitantes taxas de juro dos títulos emitidos pelos países que entraram em dificuldades na sequência da crise.



Falsa evidência n.º 8:

A UNIÃO EUROPEIA DEFENDE O MODELO SOCIAL EUROPEU


A construção europeia constitui uma experiência ambígua. Nela coexistem duas visões de Europa que não ousam contudo enfrentar-se abertamente. Para os social-democratas, a Europa deveria dedicar-se a promover o modelo social europeu, fruto do compromisso obtido após a Segunda Guerra Mundial, a partir dos princípios que o mesmo consubstancia: protecção social, serviços públicos e políticas industriais. A Europa deveria, nesses termos, ter erguido uma muralha defensiva perante a globalização liberal, uma forma de proteger, manter vivo e fazer progredir o modelo social europeu. A Europa deveria ter defendido uma visão específica sobre a organização da economia mundial e a regulação da globalização através de organizações de governação mundial. Como deveria ter permitido aos seus países membros manter um elevado nível de despesas públicas e de redistribuição, protegendo a sua capacidade de as financiar através da harmonização da fiscalidade sobre as pessoas, as empresas e os rendimentos do capital.

A Europa, contudo, não quis assumir a sua especificidade. A visão hoje dominante em Bruxelas e no seio da maioria dos governos nacionais é, pelo contrário, a de uma Europa liberal, cujo objectivo está centrado em adaptar as sociedades europeias às exigências da globalização: a construção europeia constitui nestes termos a oportunidade de colocar em causa o modelo social europeu e de desregular a economia. A prevalência do direito da concorrência sobre as regulamentações nacionais e sobre os direitos sociais no Mercado Único permitiu introduzir mais concorrência nos mercados de bens e de serviços, diminuir a importância dos serviços públicos e apostar na concorrência entre os trabalhadores europeus. A concorrência social e fiscal permitiu por sua vez reduzir os impostos, sobretudo os que incidem sobre os rendimentos do capital e das empresas (as “bases móveis”) e exercer pressão sobre as despesas sociais. Os tratados garantem quatro liberdades fundamentais: a livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais. Mas longe de se restringir ao mercado interno, a liberdade de circulação de capitais foi alargada aos investidores do mundo inteiro, submetendo assim o tecido produtivo europeu aos constrangimentos e imperativos da valorização dos capitais internacionais. A construção europeia configura-se deste modo como uma forma de impor aos povos as reformas neoliberais.

A organização da política macroeconómica (independência do BCE face às estruturas de decisão política, Pacto de Estabilidade) encontra-se marcada pela desconfiança relativamente aos governos democraticamente eleitos. Pretende privar completamente os países da sua autonomia tanto em matéria de política monetária, como de política orçamental. O equilíbrio orçamental deve ser forçosamente atingido, banindo-se qualquer política deliberada de relançamento económico, pelo que apenas se pode participar no jogo da “estabilização automática”. Ao nível da zona euro, não se admite nem se concebe nenhuma política conjuntural comum, como não se define qualquer objectivo comum em termos de crescimento ou de emprego. As diferenças quanto à situação em que se encontra cada país não são tidas em conta, pois o Pacto de Estabilidade não se comove nem com as taxas de inflação nem com os défices nacionais externos; os objectivos fixados para as finanças públicas não contemplam a especificidade da situação económica de cada país membro.

As instâncias europeias procuraram impulsionar reformas estruturais (através das Grandes Orientações de Política Económica, do Método Aberto de Coordenação ou da Agenda de Lisboa), com um êxito muito desigual. Como o método de elaboração destas instâncias não é democrático nem mobilizador, a sua orientação liberal jamais poderia contemplar as políticas decididas a nível nacional, atendendo às relações de força existentes em cada país. Esta orientação não pôde assim alcançar os sucessos incontestáveis que teria, de outro modo, legitimado. O movimento de liberalização económica foi posto em causa (com o fracasso da Directiva Bolkestein); tendo alguns países tentado nacionalizar as suas políticas industriais, ao mesmo tempo que a maioria se opôs à europeização das suas políticas fiscais e sociais. A Europa Social continua a ser um conceito vazio de conteúdo, apenas se afirmando vigorosamente a Europa da Concorrência e a Europa da Finança.

Para que a Europa possa promover verdadeiramente o modelo social europeu, colocamos à discussão duas medidas:

Medida n.º 16: Pôr em causa a livre circulação de capitais e de mercadorias entre a União Europeia e o resto do mundo, renegociando se necessário os acordos multilaterais ou bilaterais actualmente em vigor;

Medida n.º 17: Substituir a política da concorrência pela “harmonização e prosperidade”, enquanto fio condutor da construção europeia, estabelecendo objectivos comuns vinculativos tanto em matéria de progresso social como em matéria de políticas macroeconómicas (através de GOPS: Grandes Orientações de Política Social).



Falsa evidência n.º 9:

O EURO É UM ESCUDO DE PROTECÇÃO CONTRA A CRISE


O euro deveria ter funcionado como um factor de protecção contra a crise financeira mundial, uma vez que a supressão da incerteza quanto às taxas de câmbio entre as moedas europeias eliminou um factor relevante de instabilidade. Mas não é isso que tem sucedido: a Europa é afectada de uma forma mais dura e prolongada pela crise do que o resto do mundo, por factores que radicam nas opções tomadas no processo de unificação monetária.

Após 1999, a zona euro revelou um crescimento económico relativamente medíocre e um aumento das divergências entre os seus Estados membros em termos de crescimento, inflação, desemprego e desequilíbrios externos. O quadro de política económica da zona euro, que tende a impor políticas macroeconómicas semelhantes a países com situações muito distintas ampliou assim as disparidades de crescimento entre os Estados membros. Na generalidade dos países, sobretudo nos maiores, a introdução do euro não suscitou a prometida aceleração do crescimento. Para outros, o euro trouxe crescimento, mas à custa de desequilíbrios dificilmente sustentáveis. A rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, concentrou todo o peso do ajustamento no trabalho, promovendo a flexibilidade e a austeridade salariais, reduzindo a componente dos salários no rendimento total e aumentando as desigualdades.

Esta trajectória de degradação social foi ganha pela Alemanha, que conseguiu gerar importantes excedentes comerciais à custa dos seus vizinhos e, sobretudo, dos seus próprios assalariados, impondo uma descida dos custos do trabalho e das prestações sociais que lhe conferiu uma vantagem comercial face aos outros Estados membros, incapazes de tratar de forma igualmente violenta os seus trabalhadores. Os excedentes comerciais alemães limitaram portanto o crescimento de outros países. Os défices orçamentais e comerciais de uns não são senão a contrapartida dos excedentes de outros… O que significa que os Estados membros não foram capazes de definir uma estratégia coordenada.

A zona euro deveria, de facto, ter sido menos afectada pela crise financeira do que os Estados Unidos e o Reino Unido, pois as famílias da zona euro estão nitidamente menos dependentes dos mercados financeiros, que são menos sofisticados. Por outro lado, as finanças públicas encontravam-se em melhor situação; o défice público do conjunto dos países da zona euro era de 0,6% do PIB em 2007, contra os quase 3% dos EUA, do Reino Unido ou do Japão. Mas a zona euro padecia já então de um agravamento profundo dos desequilíbrios: os países do Norte (Alemanha, Áustria, Holanda, países escandinavos), comprimiam a massa salarial e a procura interna, acumulando excedentes externos, ao passo que os países do Sul e periféricos (Espanha, Grécia, Irlanda) revelavam um crescimento vigoroso, impulsionado pelas baixas taxas de juro (relativamente à taxa de crescimento), acumulando todavia défices externos.

A crise financeira começou, de facto, nos Estados Unidos, que trataram imediatamente de accionar uma política efectiva de relançamento orçamental e monetário, dando início a um movimento de restauração da regulação financeira. Mas a Europa, pelo contrário, não soube empenhar-se numa política suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental ficou-se timidamente nos cerca de 1,6% do PIB na zona euro, sendo de 3,2% no Reino Unido e de 4,2% nos EUA. As perdas na produção causadas pela crise foram nitidamente mais fortes na zona euro do que nos Estados Unidos. Na zona euro, a agudização dos défices precedeu portanto qualquer política activa, comprometendo os seus resultados.

Simultaneamente, a Comissão Europeia continuou a aprovar procedimentos contra os países em défice excessivo, a ponto de em meados de 2010 praticamente todos os Estados membros da zona euro estarem sujeitos a esses procedimentos. A Comissão obrigou então os Estados membros da zona euro a regressar, até 2013 e 2014, a valores percentuais de défice inferiores a 3%, independentemente da evolução económica que pudesse verificar-se. As instâncias europeias continuaram portanto a exigir políticas salariais restritivas e a regressão sistemática dos sistemas públicos de reforma e de saúde, com o risco evidente de mergulhar o continente na depressão e de suscitar tensões entre os diferentes países. Esta ausência de coordenação e, fundamentalmente, de um verdadeiro orçamento europeu, capazes de suportar uma solidariedade efectiva entre os Estados membros, incitaram os agentes financeiros a afastar-se do euro, preferindo especular abertamente contra ele.

Para que o euro possa proteger realmente os cidadãos europeus da crise, colocamos em debate três medidas:

Medida n.º 18: Assegurar uma verdadeira coordenação das políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus;

Medida n.º 19: Compensar os desequilíbrios da balança de pagamentos na Europa através de um Banco de Pagamentos (que organize os empréstimos entre países europeus);

Medida n.º 20: Se a crise do euro conduzir à sua desintegração, e enquanto se aguarda pelo surgimento de um orçamento europeu (cf. infra), instituir um regime monetário intra-europeu (com moeda comum do tipo “bancor”), que seja capaz de reorganizar a absorção dos desequilíbrios entre balanças comerciais no seio da Europa.



Falsa evidência n.º 10:

A CRISE GREGA PERIMITIU FINALMENTE AVANÇAR PARA UM GOVERNO ECONÓMICO E UMA VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIA


A partir de meados de 2009 os mercados financeiros começaram a especular com as dívidas dos países europeus. Globalmente, a forte subida das dívidas e dos défices públicos à escala mundial não provocou (pelo menos ainda) uma subida das taxas de juro de longo prazo: os operadores financeiros estimam que os bancos centrais manterão, por muito tempo, as taxas de juro reais a um nível próximo do zero, e que não existe um risco de inflação nem de incumprimento de pagamento por parte de um grande país. Mas os especuladores aperceberam-se das falhas de organização da zona euro. Enquanto que os governantes de outros países desenvolvidos podem sempre financiar-se junto do seu Banco Central, os países da zona euro renunciaram a essa possibilidade, passando a depender totalmente dos mercados para financiar os seus défices. Num só golpe, a especulação abateu-se sobre os países mais frágeis da zona euro: Grécia, Espanha, Irlanda.

As instâncias europeias e os governos demoraram a reagir, não querendo dar a ideia de que os países membros tinham direito a dispor de um apoio ilimitado dos seus parceiros, e pretendendo, ao mesmo tempo, sancionar a Grécia, culpada por ter mascarado – com a ajuda da Goldman Sachs – a amplitude dos seus défices. Porém, em Maio de 2010, o BCE e os países membros foram forçados a criar com urgência um Fundo de Estabilização, capaz de indicar aos mercados que seria dado um apoio sem limites aos países ameaçados. Em contrapartida, estes deveriam anunciar programas de austeridade orçamental sem precedentes, que os condenam a um recuo da actividade económica no curto prazo e a um longo período de recessão. Sob pressão do FMI e da Comissão Europeia, a Grécia é forçada a privatizar os seus serviços públicos e a Espanha obrigada a flexibilizar o seu mercado de trabalho. E mesmo a França e a Alemanha, que não são vítimas do ataque especulativo, anunciaram medidas restritivas.

Contudo, globalmente, a oferta não é de nenhum modo excessiva na Europa. A situação das finanças públicas é melhor do que a dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, deixando margens de manobra orçamental. É por isso necessário reabsorver os desequilíbrios de forma coordenada: os países excedentários do Norte e do centro da Europa devem encetar políticas expansionistas (com o aumento dos salários e das prestações sociais), tendo em vista compensar as políticas restritivas dos países do Sul. Globalmente, a política orçamental não deve ser restritiva na zona euro, tanto mais que a economia europeia não se aproxima do pleno emprego a uma velocidade satisfatória.

Mas, infelizmente, os defensores das políticas orçamentais automáticas e restritivas encontram-se hoje em posição reforçada na Europa. A crise grega fez esquecer as origens da crise financeira. Aqueles que aceitaram apoiar financeiramente os países do Sul querem impor, em contrapartida, um endurecimento do Pacto de Estabilidade. A Comissão e a Alemanha pretendem obrigar todos os países membros a inscrever o objectivo de equilíbrio orçamental nas suas constituições e vigiar as suas políticas orçamentais por comissões de peritos independentes. A Comissão quer impor aos países uma longa cura de austeridade para que se regresse a uma dívida pública inferior a 60% do PIB. Se existe algum avanço em matéria de governo económico europeu, é um avanço em direcção a um governo que, em vez de libertar o garrote das finanças, pretende impor a austeridade e aprofundar as “reformas” estruturais, em detrimento das solidariedades sociais em cada país e entre os diversos países.

A crise oferece de mão beijada, às elites financeiras e aos tecnocratas europeus, a tentação de pôr em prática a “estratégia do choque”, tirando proveito da crise para radicalizar a agenda neoliberal. Mas esta política tem poucas hipóteses de sucesso, uma vez que:

● A diminuição das despesas públicas comprometerá o esforço necessário, à escala europeia, para assegurar despesas futuras (investigação, educação, prestações familiares), apoiar a manutenção da indústria europeia e para investir nos sectores do futuro (economia verde);

● A crise permitirá impor reduções drásticas nas despesas sociais, objectivo incansavelmente perseguido pelos paladinos do neoliberalismo, comprometendo perigosamente a coesão social, reduzindo a procura efectiva, empurrando as famílias a poupar para as suas reformas e a sua saúde junto das instituições financeiras, responsáveis pela crise;

● Os governos e as instâncias europeias recusam-se a estruturar a harmonização fiscal, que permitiria um necessário aumento de impostos sobre o sector financeiro, sobre o património e sobre os altos rendimentos;

● Os países europeus terão de implementar, por um longo período, políticas orçamentais restritivas que vão afectar fortemente o crescimento. As receitas fiscais diminuirão e os saldos públicos apenas registarão ligeiras melhoras. Os rácios de dívida irão degradar-se e os mercados não ficarão tranquilos;

● Face à diversidade de culturas políticas e sociais, nem todos os países europeus se poderão ajustar à disciplina de ferro imposta pelo Tratado de Maastricht; nem se ajustarão ao seu reforço, que actualmente se prepara. O risco de activação de uma dinâmica generalizada de recusa deste reforço é real.

Para avançar no sentido de um verdadeiro governo económico e de uma verdadeira solidariedade europeia, propomos para discussão duas medidas:

Medida n.º 21: Desenvolver uma verdadeira fiscalidade europeia (taxa de carbono, imposto sobre os lucros, etc.) e um verdadeiro orçamento europeu, que favoreçam a convergência das economias para uma maior equidade nas condições de acesso aos serviços públicos e serviços sociais nos diferentes Estados membros, com base nas melhores experiências e modelos;

Medida n.º 22: Lançar um vasto plano europeu, financiado por subscrição pública a taxas de juro reduzidas mas com garantia, e/ou através da emissão monetária do BCE, tendo em vista encetar a reconversão ecológica da economia europeia.




Conclusão


DEBATER A POLÍTICA ECONÓMICA, TRAÇAR CAMINHOS PARA REFUNDAR A UNIÃO EUROPEIA

A Europa foi construída, durante três décadas, a partir de uma base tecnocrática que excluiu as populações do debate de política económica. A doutrina neoliberal, que assenta na hipótese, hoje indefensável, da eficiência dos mercados financeiros, deve ser abandonada. É necessário abrir o espaço das políticas possíveis e colocar em debate propostas alternativas e coerentes, capazes de limitar o poder financeiro e preparar a harmonização, no quadro do progresso dos sistemas económicos e sociais europeus. O que supõe a partilha mútua de importantes recursos orçamentais, obtidos através do desenvolvimento de uma fiscalidade europeia fortemente redistributiva. Tal como é necessário libertar os Estados do cerco dos mercados financeiros. Somente desta forma o projecto de construção europeia poderá encontrar uma legitimidade popular e democrática de que hoje carece.

Não é evidentemente realista supor que os 27 países europeus decidam, ao mesmo tempo, encetar uma tamanha ruptura face ao método e aos objectivos da construção europeia. A Comunidade Económica Europeia (CEE) começou com seis países: do mesmo modo, a refundação da União Europeia passará inicialmente por um acordo entre alguns países que desejem explorar caminhos alternativos. À medida que se tornem evidentes as consequências desastrosas das políticas actualmente adoptadas, o debate sobre as alternativas crescerá por toda a Europa. As lutas sociais e as mudanças políticas surgirão a ritmos diferentes, consoante os países. Os governos nacionais tomarão decisões inovadoras. Os que assim o desejem deverão adoptar formas de cooperação reforçadas para tomar medidas audazes em matéria de regulação financeira, de política fiscal e de política social. Através de propostas concretas, estenderemos as mãos aos outros povos para que se juntem a este movimento.

É por isso que nos parece importante esboçar e debater, neste momento, as grandes linhas das políticas económicas alternativas, que tornarão possível esta refundação da construção europeia.

1. N.T.: Imitar os outros, perdendo todo o sentido crítico.

sábado, 2 de outubro de 2010

Comunicado da ESTC e Carta Aberta do Projecto Embaixada do Teatro Brasileiro


COMUNICADO


O Conselho Directivo da Escola Superior de Teatro e Cinema comunica que os espectáculos “3 Cigarros e a Última Lasanha” e “Dentro”, da Embaixada do Teatro Brasileiro, programados para hoje, dia 1 de Outubro, foram cancelados devido a questões que transcendem o regular funcionamento da Escola Superior de Teatro e Cinema.
Quaisquer esclarecimentos serão prestados pela BackGround, produtora do evento.


CARTA ABERTA DO PROJECTO EMBAIXADA DO TEATRO BRASILEIRO

Amigos portugueses, quem v...os escreve é a equipe do projeto EMBAIXADA DO TEATRO BRASILEIRO. Esperamos que vocês não confundam nossas opiniões sobre a ESTC com o que pensamos e sentimos por Portugal. É exatamente pela irmandade que sentimos pelos portugueses que decidimos acabar publicamente com uma farsa de mau gosto instaurada no ventre da referida escola.

Esta carta segue para artistas, jornalistas, estudantes, universidades, embaixadas, ministérios de cultura e educação de Brasil e Portugal e para quem mais achemos que deva seguir, pois ao contrário do teatro de onde fomos banidos, o espaço virtual é livre e não pode sofrer censura da ESTC.
Pedimos àqueles que concordem ou discordem de nosso ponto de vista que ajudem a difundir esta carta. O contraditório é bom para o Teatro, para o Ensino e para o exercício da Democracia.

Apesar da frágil argumentação da ESTC em favor de uma discussão privada entre as partes envolvidas, decidimos pela carta aberta por entender que o público, ou seja, as pessoas que vão chegar ao teatro esta noite e dar com a cara na porta, que o público, parte mais interessada nesta discussão, estaria ausente no momento das explicações sobre o motivo que frustrou seus esforços em deslocar-se até a Amadora (sede da ESTC) para ver obras do teatro contemporâneo brasileiro. Por fim, encontraram um portão fechado. Aproveitamos ainda a palavra “público” para lembrar que a ESTC é uma instituição pública, donde não vemos razões para articulações de bastidores quando se trata de alg o do interesse público, como o cancelamento de um espetáculo poucas horas antes de sua realização em instalações públicas, medida que tem como maior prejudicado o público, que perdeu a oportunidade de assistir gratuitamente a duas peças teatrais representantes do novo Brasil. E, como veremos mais adiante, a discórdia que levou ao fútil cancelamento, não teve outra raiz que não a discussão sobre o público.

Antes da explicação, uma ligeira introdução para recordar aos amigos o que estamos fazendo em Lisboa:

O Ministério da Cultura do Brasil, em seu empenho por estreitar os laços culturais com seus irmãos dos mundos lusófono e hispânico, lançou em 2009 o projeto EMBAIXADA DO TEATRO BRASILEIRO, uma extensa e variada programação composta por espetáculos teatrais, cinema, workshops e seminários que tem como um de seus objetivos contar um pouco da história do moderno teatro brasileiro.

O outro e mais importante objetivo deste projeto é fazer uma “radiografia” da dramaturgia contemporânea em diversos países que falam português e espanhol, ou seja, estamos entrevistando dramaturgos, atores, diretores e críticos de todos estes países e recolhendo suas obras para levá-las ao Brasil. Pretendemos traduzir (no caso do espanhol) e ler publicamente estas obras em solo brasileiro com diversos grupos nacionais. Também queremos convidar artistas de todos os países envolvidos para participarem de montagens de várias destas obras no Brasil ao lado de artistas brasileiros. Por fim, lançaremos edições bilíngües (português e espanhol) das obras que representam a nova dramaturgia afroiberoamericana.


Já visitamos 12 países entre América Latina, Europa e África. Ainda faltam 04 países para que se encerre este ciclo. São mais de 200 horas de vídeo entre entrevistas com mais de uma centena de artistas e obras filmadas nas diversas cidades visitadas. Mais de 500 horas entre workshops, espetáculos e seminários. Some-se a isto 240 alunos das oficinas até o momento, fora os ouvintes. Ainda mais uns 5000 espectadores para os espetáculos. E para abusar do “mais”, enfim, o mais importante: TUDO GRATUITO! O Ministério da Cultura do Brasil financiou completamente este projeto para que o público dos nossos países irmãos pudesse participar deste intercâmbio sem distinções econômicas. Se todas estas ações não demonstram boa vontade e amizade da parte do Brasil, entendemos que se perdeu o significado de boa vontade e amizade.

Vale ainda ressaltar que o “Embaixador do Teatro” responsável por este projeto é nada menos que um dos atores mais importantes dos nossos palcos como podem atestar todos os livros de história sobre o moderno teatro brasileiro. Trata-se de RENATO BORGHI. Sugiro que façam uma simples pesquisa no Google para saber um pouco mais sobre a envergadura teatral deste nobre senhor com 52 anos de carreira.

Após quase um ano de viagens pelo mundo hispânico, falando somente em espanhol, qual não foi a nossa felicidade quando aportamos nestas terras da nossa doce língua. É muito sagrado para um ator falar na sua língua de origem. Para o workshop sobre Nelson Rodrigues, contamos com uma das turmas mais dedicadas que encontramos durante toda nossa odisséia. Atores de entrega comovente. De seriedade comovente. Na ESTC, fomos recebidos de início com simpatia e gentileza. As nossas produtoras locais se mostraram presentes, eficientes e atentas a todas as nossas necessidades. Tudo prenunciava um lindo céu outonal de Lisboa para o vôo da nossa EMBAIXADA.

Infelizmente, não tardou que cinzentas nuvens, velhas conhecidas e inimigas dos artistas, sombreassem a ESTC. Coisas que haviam passado despercebidas em princípio começaram a adquirir corpo: por exemplo, entre os alunos do workshop, havia quase nenhum ligado à escola; estranho sintoma no caso de uma escola de teatro que está recebendo um dos ilustres do teatro brasileiro. Mas pensamos: bem, o fim das férias de verão (fragilíssima desculpa)... E relevamos o fato (nunca é demais lembrar que alunos de férias continuam a ter seus e-mails e nem toda gente foge de Portugal. Mas enfim, deixamos passar!).

Houve também um episódio em que nos desculpamos com a direção da escola porque eles sentiram-se ofendidos ao não serem convidados oficialmente pela Embaixada do Brasil para um evento de lançamento do projeto no próprio edifíci o da Embaixada. A Embaixada do Brasil é soberana e independente de nosso projeto, é bom lembrar. De qualquer forma, solidarizamos-nos com a direção da escola, agradecemos a acolhida que nos deram, manifestamos nossa alegria por estarmos ali e os céus de Lisboa ainda pareciam azuis. É verdade que houve algumas resistências por parte da escola em flexibilizar um pouco mais os horários para que se pudesse ampliar o tempo de trabalho do workshop. Mas tudo acabou contornado ao final.

O seminário de BORGHI sobre a história do teatro brasileiro moderno correu dentro da normalidade, apesar da tímida presença dos alunos da ESTC, que foram basicamente instigados a comparecer pelos professores Eugênia Vasquez e Armando Rosa, os únicos que verdadeiramente se aproximaram de nós dentro da escola. Ainda que após um pequeno intervalo, a sala tenha se esva ziado consideravelmente, poderia se dizer que o objetivo do seminário foi cumprido a contento.


Veio então a primeira chuva sem avisar sobre nossas cabeças: nós e os 24 alunos do workshop (que não eram alunos da ESTC em sua esmagadora maioria) quase nos matamos de trabalhar para apresentar aos alunos da ESTC cenas do maior dramaturgo ...brasileiro, Nelson Rodrigues, quiçá um dos maiores da língua portuguesa, ainda relativamente pouco conhecido em Portugal se levamos em consideração sua estatura e o idioma comum. Parecia óbvio que a ESTC quando nos acolheu tinha um plano pedagógico para isto, afinal é o que se espera de uma instituição que se declara de “ensino superior”.

Pois qual foi nossa surpresa ao percebermos que não, não era óbvio: não havia nenhum plano de estudos ou de pesquisa com os alunos, sequer havia uma curiosidade qualquer no ar. Não havia praticamente nenhum aluno ou professor da ESTC para prestigiar o trabalho dos colegas brasileiros e portugueses que se esfalfaram por 05 dias para oferecer alguns singelos fragmentos do que nossa dramaturgia tem de melhor. Se não houve curiosidade sobre Nelson Rodrigues, nem falemos a respeito da curiosidade que deveria haver em uma escola de teatro sobre o trabalho de um grupo estrangeiro de importante currículo, quanto menos sobre a curiosidade pelos atores portugueses que “nem da escola eram” (discriminação explicitamente clara diante do nulo comparecimento de alunos e professores da ESTC à atividade).

Certamente, pedimos perdão aos 03 ou 04 professores ou alunos que compareceram (se é que compareceram) a esta apresentação. Mas isto não aliviou a nossa dor. E voltando ao tema público, nossa dor foi pública, o que justifica nosso desabafo público. Não me parece nada justo que nós atores fiquemos totalmente expostos ao relento d e uma sala fria e vazia e depois nos peçam para fazer as críticas em privado para poupar as falhas da escola. Fazer uma crítica em público, ainda que seja dura, é a própria essência do fenômeno teatral, além de constituir o espírito crítico das maiores escolas do mundo. Portanto, a alegação de que deveríamos fazer críticas fechados em pequenas salas protegidas do olhar público não convence e alimenta hábitos nocivos à boa saúde do teatro e de uma instituição de ensino madura. Refutamos com veemência estas práticas palacianas covardes disfarçadas de boas maneiras.

O Teatro está ligado à Ágora grega e perde seu vigor quando se afasta do conflito em praça pública. Se o teatro fosse o lugar destas “boas maneiras”, a melhor parte da dramaturgia universal nem teria surgido. Uma escola que se dedica ao ensino do fenômeno teatral não pode se esconder por detrás das “boas maneiras” para disfarçar suas fraquezas. Apegar-se a estes conceitos duvidosos de “comportamento adequado” apenas demonstra um autismo auto-indulgente que desidrata o ímpeto da criação artística. Péssimo caminho para uma escola de teatro que ambicione alguma excelência crítica.


A primeira decepção com as cenas de Nelson Rodrigues só faria introdução a outra muito maior: os dois espetáculos de dramaturgia contemporânea brasileira protagonizados por BORGHI foram solenemente ignorados pela ESTC. Não havia professores. Nem perguntemos pelos alunos: havia uns heróicos 04 ou 05, aos quais agradecemos muito. Se não fossem os fiéis alunos do nosso workshop e seus acompanhantes, mais as nossas produtoras e equipe, não contaríamos sequer com 10 pessoas no platéia de um teatro com uma capacidade imensa de público (o que amplia ainda mais o vazio).

Vocês podem imaginar o que um dos maiores atores portugueses sentiria se chegasse a uma escola de teatro brasileira para dar o seu melhor, aos 73 anos de idade e 52 de carreira e acabasse por ser humilhado desta forma? Porque foi uma humilhação pública. Apesar da perple xidade, fizemos o melhor espetáculo que pudemos em honra aos poucos, mas salvadores que vieram nos ver.


Perguntamos, amigos portugueses: é esta total ausência de articulação e mobilização que vocês esperariam encontrar numa escola de teatro? Não ficariam vocês espantados se o mesmo lhes acontecesse no Brasil. Se a ESTC não tem condições de mobilizar seus professores, quanto mais seus alunos, deveria nos ter avisado desta sua incompetência, pois jamais teríamos aceitado ir para lá. Amigos portugueses, vocês têm noção do quanto foi gasto pelo governo brasileiro para trazer uma equipe de 06 pessoas a Portugal por 15 dias arcando com todos os custos para que os lisboetas pudessem desfrutar gratuitamente um pouco do nosso teatro? Alguém pode imaginar o tamanho do desperdício humano e financeiro que se fez presente naquela sala de teatro vazia e com o cancelamento irresponsável de hoje? Vale lembrar que o Teatro sempre pode se debater com salas vazias, esta é uma realidade que nós artistas conhecemos bem. Mas este raciocínio vale para uma sala regular de teatro no centro de Lisboa. Seria um risco assumido de bom grado.

Quando aceitamos ir para a Amadora, sabíamos estar contando exclusivamente com os alunos da ESTC ou talvez, se a escola fosse bem articulada (o que definitivamente não é) poderíamos ter a presença dos vizinhos da escola. Claro que a ESTC sabia desta contingência tão bem quanto nós.. De qualquer maneira, decidir por fazer um projeto de tal importância e complexidade no espaço de uma escola na Amadora (falamos apenas pela distância do centro de Lisboa, sem nenhum preconceito em relação à cidade) foi um ato de confiança na capacidade de articulação e mobilização da ESTC. Portanto, a responsabilidade da ESTC na atração de seus professores e alunos era ainda maior, pois, caso contrário, ficaríamos quase às moscas, o que efetivamente se deu. Tudo isto não parece óbvio? Que a ESTC deveria ter se empenhado mais na mobilização interna e também na proposição de pesquisa ao s seus alunos a partir das experiências intercambiadas com os artistas de além mar? Não é isso que se espera de uma ESCOLA SUPERIOR DE TEATRO em qualquer parte do mundo? Não é o óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues?

Pois bem, aparentemente não foi assim que pensaram alguns dos funcionários da ESTC. Dias antes das apresentações, no primeiro dia de aulas dos alunos após as férias, ou seja, o dia perfeito para fazer uma divulgação corpo-a-corpo com os alunos, nosso mestre, RENATO BORGHI se ofereceu para dar uma palavrinha de 05 minutos com os alunos para fazer um convite pessoal às atividades. Este episódio sozinho demole completamente a frágil desculpa das férias escolares para a ausência de vida na sala teatral. BORGHI, com seus 73 anos, 52 de palco, só se deslocou para a Amadora neste dia para fazer isto! Em qualquer boa escola de teatro do mundo seria considerada uma honra contar com a breve presença de um ator tão ilustre quanto RENATO BORGHI para uma aula inaugural. Para falar só 02 minutinhos! Foi só isso que pedimos. Ele se ofereceu até para ir de classe em classe falar com os alunos. Compreenderam?! Um dos maiores atores do Brasil se oferecendo humildemente para convidar os alunos de classe em classe. E qual foi a resposta da escola? Não. Não para os 02 minutos na aula inaugural. Não para a peregrinação de classe em classe. Não, não e não.

Sequer vamos levantar aqui os argumentos da escola, pois para qualquer pessoa razoavelmente lúcida este é um caso em que se dispensam argumentos. Repetir os torpes argumentos da escola seria tripudiar sobre a precariedade humana e artística de certos setores da ESTC e não é esta nossa intenção aqui.


Chegamos então ao motivo do cancelamento de nossos espetáculos: ao final da vazia e decepcionante apresentação de quinta (com ressalva ao pequeníssimo e maravilhoso público que compareceu), nos dirigimos à platéia e dissemos o seguinte (est...á tudo gravado em vídeo para dirimir qualquer dúvida):
“Agradecemos a acolhida da ESTC, mas queremos fazer uma crítica. Esperamos que a Escola aceite”. A crítica foi dura com base no relato acima e na razão que nos dá sólida sustentação. Dissemos apenas a verdade: que era uma vergonha para aquela escola acolher artistas estrangeiros com tamanha precariedade na sua capacidade de articulação e mobilização; e que tal abandono não havia acontecido em nenhum outro país, nem nas mais pobres nações da América Latina.

Foi um choque que isto ocorresse em pleno solo europeu, berço do teatro ocidental. Expusemos nossa dor e decepção ao público porque nossa dor e decepção foram públicas. Nós é que tivemos de suportar impávidos a tristeza de uma casa vazia em pleno seio de uma escola de teatro. RENATO BORGHI partiu mais para um desabafo dolorido e com todo direito que seus 52 anos de teatro lhe permitem. Negar o direito de desabafo a um ator desta monta é negar toda a tradição do teatro, pois a causa do ator era justa. Não foi um ataque de estrelismo. De novo, pensem num importante ator português passando por isto numa escola de teatro brasileira? O que ele diria sobre o ocorrido no Brasil quando voltasse a Portugal? Certamente, não seria algo muito elogioso.

Por fim, um funcionário da ESTC manifestou-se em tom já bastante elevado, o que elevou ainda mais o tom geral. Jogou a responsabilidade nas costas dos alunos, disse que “não podiam obrigar ninguém a ir”, ou seja, rasgou princípios básicos da pedagogia segundo os quais existe um mestre, um aluno orientado por ele e um programa a ser seguido, ou seja, ensino não é improviso. Quando perguntei sobre a ausência dos professores, o funcionário não conseguiu dar explicação coerente. Após uma troca de insultos em voz alta conosco no palco quando todos dissemos algumas palavras fortes, ele baixou à platéia, foi à beira do palco e insinuou como um pequeno ditador de comédia que deixássemos a cena de maneira bastante autoritária e bizarra; obviamente não acatamos o ato de censura. O funcionário ainda foi obrigado a ouvir a crítica de algumas pessoas da platéia que se solidarizaram conosco. Por fim, desistiu de nos expulsar do palco e lhe dissemos que estávamos apenas nos expressando e que o Teatro era lugar para isto, que ele também poderia se expressar e que isto era normal e necessário ainda que pudesse ser desagradável. Terminamos por encerrar a discussão dizendo ao público que eles sabiam que a razão estava do nosso lado, ao que eles nos aplaudiram efusivamente. Depois, muitos foram ao camarim prestar sua solidariedade para com nosso protesto. E foi isto: uma crítica pública, um desabafo veemente de um ator, uma discussão acalorada, algumas palavras fortes, uma tentativa tosca de censura, um aplauso entusiástico, uma atriz portuguesa formada pela escola chorou de vergonha na platéia por reconhecer a verdade. Repito: existe o vídeo para provar que não há inverdades neste relato.


Será isto causa para o cancelamento de um espetáculo? Normalmente se cancelam apresentações diante de mortes, enfermidades, acidentes ou falta de público. Nunca vimos em todos os nossos anos de estrada um espetáculo ser cancelado por uma crítica pública a qualquer pessoa ou instituição séria que tem compromissos com o público. Ainda que publicamente e em tom muito duro, um protesto justo. Só em ditaduras é que acontecem tais atos de soberba e violência. Os dirigentes da ESTC argumentaram que “não se pode ofender a casa que nos acolheu” e que deveríamos discutir esta questão em privado. Usaram estes argumentos baratos e covardes para cancelar um espetáculo que veio do outro lado do Atlântico, horas antes dos artistas se apresentarem.

Primeiro, vamos lembrar algumas coisas básicas: a casa não é deles, é pública, o que deveria levar a uma consideração sobre as conseqüências do cancelamento para o público. Usar estes argumento pífios, passando por cima dos interesses do público, que vai dar com a cara no portão da escola depois de 30 minutos de comboio é, para dizer o mínimo, patético, pois diz o bom senso que este tipo de argumentação vitimista deve ser usado com extrema moderação até nos casos mais pessoais. Em casos onde o interesse público está envolvido, só demagogos têm coragem para usar este tipo de retórica infantil. Nós também poderíamos dizer: “não se recebe um convidado para jantar com uma sopa de pedras”. E daí?! Não se trata de um concurso de frases feitas dos almanaques de outrora. Este tipo de retórica não é digna nem de passar à frente dos portões de qualquer universidade que se preze.


Lamentamos profundamente que isto tenha acontecido em Portugal, justamente a terra de uma das primeiras universidades da Europa. E dentro de uma faculdade. Quando chamam crítica de ofensa e se lixam para o interesse público, os dirigentes d...a ESTC responsáveis pela decisão do cancelamento do espetáculo só confirmam a justiça de nosso protesto contra a hipocrisia, burocracia, arrogância, ignorância, despreparo e anemia demonstrados por alguns setores desta escola neste episódio. Esperamos que os professores e funcionários que não partilham da visão obscurantista e “naif” da ESTC neste caso, tenham a sabedoria de não tomar estas palavras para si.

Deviam aceitar a crítica para melhorar. Admitir as falhas. Mas não o farão. A mediocridade intrínseca subjacente a esta situação nos faz prever reações de repúdio e negação por parte da ESTC. Pior para o ensino superior. Pior para o Teatro. Pior para os alunos. Pior para Lisboa. Pior para Portugal.
Banir, expulsar, cancelar, defender a honra da instituição, tudo isto lembra tempos obscuros e tem cheiro de carne medieval queimada. Não se aprendeu nada com episódios como o de Saramago? Ou com a saída magoada de Augusto Boal do país? Ou com o expurgo de José Celso e sua companhia das terras portuguesas? Agora é mais um importante artista brasileiro que se vai de sua amada Lisboa levando uma decepção desnecessária. Será que os “outros” é que estão sempre errados? Para quê tanto orgulho? Por que a ESTC opta pela defesa do atraso?

Durante a ditadura no Brasil também era proibido fazer críticas públicas ao próprio país. Os militares diziam que era uma vergonha falar mal do próprio país que os alimenta. Diziam que os críticos do país eram mal-agradecidos, antipatrióticos e traidores. Fossem os críticos brasileiros ou estrangeiros. Esta sempre foi a grande desculpa das ditaduras para enfiar a censura goela abaixo dos cidadãos: a defesa da pátria.

E não nos venham depois dizer que o incidente do cancelamento partiu de indivíduos que foram desrespeitados. Não teria cabimento. Quando vítimas são indivíduos e quando carrascos e juízes se portam como instituição? Façam-nos um favor!
Ficamos chocados com o fato de ter passado uma noite entre o incidente e a decisão do cancelamento e mesmo assim não haver um ato de reflexão adulto por parte da ESTC. Dói pensar que os responsáveis pela decisão sejam tão ingênuos que não tenham pensado que um ato de censura desta magnitude tem suas conseqüências, além dos óbvios paralelos com regimes totalitários. Não perceberam os tais dirigentes a cara facista que a ESTC mostrou ao mundo ao rechaçar uma companhia estrangeira de suas instalações por motivos duvidosos como a defesa da instituição? Que perigo corria a instituição? Por acaso íamos explodir uma bomba no teatro? Por que nos tornamos uma ameaça à ESTC só por expor publicamente nossas divergências? Por que a “honra” da faculdade não pode ser atingida publicamente por uma dura crítica? A ESTC é absoluta, por acaso? É sagrada? É escola superior ou igreja?
Não há aulas de história na ESTC?

Mas como dizia Brecht: “A verdade é filha do tempo e não da autoridade”. Então, podem espernear, que nem por isso a razão deixará de estar do nosso lado.
Queremos que os amigos portugueses saibam que esta estória infeliz não muda nada do nosso amor por Lisboa, por Portugal , pelos portugueses, pela língua e pelo Teatro. Pelo contrário, o amor sai fortalecido quando se enfia o dedo no olho da mentira. Levaremos daqui muitos textos portugueses de dramaturgos contemporâneos e esperamos divulgá-los, montá-los e publicá-los para sua circulação por todo universo afroiberoamericano a partir de 2011/2012.

Aproveitamos para convidar a todos os amigos portugueses para que venham se despedir de nós este sábado, dia 02, na Cinemateca de Lisboa com o filme O REI DA VELA, às 21hs. Um clássico da nossa dramaturgia protagonizado por RENATO BORGHI. Por favor, venham demonstrar a doce sensibilidade portuguesa para com este nosso querido ator. Sensibilidade que passou longe da ESTC quando viram o sofrimento deste grande artista e, em vez de retribuir com carinho, paciência e compreensão pela dificuldade enfrentada, pela história deste senhor, pelo suor dos atores, eles da ESTC se fecharam numa concha de vícios e como dizemos no Brasil: vestiram a carapuça! Não deve ser à toa que o tal funcionário “ofendido e vilipendiado” em nome da ESTC pelos “selvagens brasileiros” era o encarregado de comunicação da escola ...É preciso dizer mais alguma coisa? Quando perguntado sobre o que tinha feito para difundir o projeto na ESTC, o tal funcionário respondeu: “Facebook e site da escola”. Ou seja, viemos para uma ESCOLA SUPERIOR DE TEATRO para receber o plano pedagógico e de divulgação de uma criança de 10 anos. É preciso dizer mais alguma coisa? Não.

EQUIPE DO PROJETO EMBAIXADA DO TEATRO BRASILEIRO

(Texto retirado dum post de Miguel Castro Caldas no Facebook)